É um assunto espinhoso (coisa que nem deveria ser), mas não tenho como ficar sem falar nele. O assunto é Ayrton Senna.
É natural que novas gerações neguem as gerações passadas. É um processo de libertação e acontece sistematicamente na dinâmica do mundo moderno. Durante a criação da própria identidade, filhos renegam os costumes, gostos, vocabulário, ídolos e outras características das gerações passadas para poderem adquirir suas próprias referências e modelos.
Este fenômeno vem acontecendo agora, principalmente com relação a Ayrton Senna. A negação dos mais jovens faz parte, é de se aceitar, mas o que me causa muita estranheza é o quanto de agressividade, mentira e revolta aparecem neste processo de negação.
Recebo e-mails, amigos também recebem, sites e fórums de discussão pela Internet ficam sempre repletos de palavras agressivas, desonestas, covardes, mentirosas e descabidas com relação à pessoa e o que Ayrton Senna fez nas pistas.
Sua morte prematura e traumática fez com que sua história ganhasse contornos superlativos, é verdade. Uma grande vitória virou um ato heróico, um título mundial virou uma epopéia, uma volta de comemoração empunhando a bandeira nacional se transformou na redenção de todo um povo. Houve exageros, musiquinhas e outras patacoadas, a gente sabe disso. Toda mitificação pode, e deve, ser contestada.
Mas por exemplo, o que ele fez em Donington Park em 1993 foi fantástico? Foi. Foi inédito? Foi. Foi espetacular? Foi. Foi um dos maiores momentos da história da Fórmula 1? Foi. Tudo isso são fatos, e contra fatos não há argumentos, já dizia a véia. Mas impressiona como muita gente tenta jogar isso por terra. Inventam mentiras de que a McLaren tinha freios ABS. Não tinha. Dizem que Senna só fez aquilo porque tinha suspensão ativa. Mas as Williams que ele jantou também tinham, Cacilda!
Questionar os exageros é saudável, mas negar os fatos beira a doentia. E um dos fatos que mais têm sido negados são as circunstâncias que envolveram a vitória dele no Brasil, em 1991, correndo as últimas voltas só com a sexta marcha. Até uma entrevista de Osamu Goto - engenheiro de motores da Honda na época - para a Autosprint, cuja existência até hoje ninguém conseguiu aferir, vem circulando pela Internet para "provar" que Senna não correu apenas com uma marcha. Garantem que foi tudo mentira, "marketing" e auto-promoção. Revelam sentir pena deste pobre povo brasileiro que foi ludibriado por este gigantesco esquema. Mas falam e garantem coisas que não sabem.
Um vídeo da Fuji TV que está no Youtube está provando o que já se sabia. Senna correu, sim, somente com a sexta marcha nas últimas voltas. Este vídeo mostra, por inteira e sem cortes, a volta 70 da corrida, a penúltima. Na telinha de baixo, para comparar, uma das primeiras voltas na mesma corrida. Confira abaixo, a volta começa aos 5min53s.
Perceba como Senna não tira as mãos do volante - na época apenas Ferrari e Williams tinham câmbio semi-automático, é bom frisar. Faz o "S" do Senna, laranjinha, bico de pato, junção, tudo sem trocar marchas. Sem mexer na alavanca de câmbio, na pista escorregadia da chuva e com pneus desgastados, fez uma volta de 1'25.177 em Interlagos. A melhor da corrida, de Mansell, logo após trocar os pneus pela segunda vez e com pista seca, foi na casa de 1'20. Foi genial. Coisas que poucos como ele, Schumacher, Prost ou Piquet seriam capazes de fazer. Um momento para assistir com admiração. Está público, notório e comprovado que o "milagre da sexta marcha", modo sarcástico como alguns detratores costumam chamar o evento, existiu.
Como disse antes: contra fatos, não há argumentos. Certamente mais algum senão será aventado, ou inventado. Mas pelo menos esta questão está resolvida.
Todos somos livres para gostar ou não gostar de quem a gente quiser. Todos podemos expor nossas opiniões, felizmente. Há quem faça de Senna mais do que ele foi, mas o que não dá para dizer é que ele foi apenas um produto bem lapidado. Senna era gênio. Assombrou a Fórmula 1 nos anos 80/90, foi o maior nome do esporte durante pelo menos 7 anos. A Rede Globo, sozinha, não fez tudo isso. Nas pistas ele cativou o mundo, o que é inegável.
Se você acha que falar bem de Senna faz de você um babaca que comprou o que a "mídia" tentou te vender, continue achando. Não sou eu nem ninguém quem vai mudar isso. Mas quem tenta bancar o esperto não é de fato esperto. E todo mundo sabe disso.
Este é o espaço no qual Ivan Capelli fala sobre automobilismo e alguns pormenores do cotidiano, com seu ponto-de-vista bastante particular. Além disso, toda terça-feira, uma charge sobre automobilismo.
Jornalista, 30 anos, um chato que dá pitaco em quase tudo sobre automobilismo. Além de manter este blog, Capelli colabora com o site Grande Prêmio, escreve uma coluna mensal no GP Total e co-produz e co-apresenta o podcast Rádio GP.
